27 Abril 2021
Karen Kilby, articulista ocasional da revista Commonweal, é professora da Cátedra Bede de Teologia Católica na Durham University, na Inglaterra. Embora Kilby viva e lecione na Inglaterra, ela é estadunidense de nascimento. Ela se formou em Matemática e em Estudos Religiosos em Yale, antes de obter um doutorado lá. Como estudante de pós-graduação, trabalhou com o estudioso luterano George Lindbeck, autor do influente “The Nature of Doctrine: Religion and Theology in a Postliberal Age” [A natureza da doutrina: religião e teologia em uma era pós-liberal, em tradução livre], e com a formidável Kathryn Tanner, autora de “Christ the Key” [Cristo, a chave, em tradução livre].
O comentário é de Paul Baumann, publicado por Commonweal, 20-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Kilby é autora de “Karl Rahner: A Brief Introduction” [Karl Rahner: uma breve introdução, em tradução livre] e de “Balthasar: A (Very) Critical Introduction” [Balthasar: uma introdução (muito) crítica, em tgradução livre]. Ambos são de primeira linha.
Eu sou jornalista, não teólogo, mas leio teologia acadêmica e antigamente costumava editá-la em algo acessível ao leitor em geral. Acho que uma boa escrita teológica, como a de Kilby, estimula a leitura, assim como um pensamento mais aguçado sobre uma série de questões não teológicas.
Seu novo livro, “God, Evil and the Limits of Theology” [Deus, o mal e os limites da teologia] (T&T Clark, 176 páginas), uma coletânea de artigos publicados em revistas teológicas, é desafiador e gratificante. Kilby discute questões teológicas abstrusas de forma clara e com modéstia intelectual.
Ela é uma teóloga que elogia a “profunda beleza que se esconde na obra de Karl Rahner”, mas é sincera sobre os seus “escritos às vezes torturantes”. Ela demonstra de forma convincente que Hans Urs von Balthasar é mais um mitologista, embora seus defensores teológicos conservadores não estariam dispostos a admitir isso.
De forma revigorante, ela é também uma fiel que reconhece que o “ideal belo e ordenado” da verdade e da vida cristãs precisa incluir o fato de “pensar sobre o tédio, os conflitos, as inadequações, a ordinariedade pura que tanto marca a experiência de ser cristão e de estar em comunidade com outros cristãos da maioria dos cristãos”. Bem-vindos à missa dominical.
O problema que Kilby aborda em seu novo livro diz respeito a um dos paradoxos centrais da teologia: “Como alguém se engaja em um modo de investigação – uma investigação que envolve argumento, desacordo e debate – se presume de antemão que a ‘coisa’ em discussão é e deve continuar sendo misteriosa, para além da compreensão?”.
Para iluminar esse enigma, Kilby dedica ensaios à Trindade, aos enigmas da teodiceia e ao sentido do sofrimento e do mal (ou da sua ausência), e à relação possivelmente complementar entre a “matemática pura” e a teologia. Às vezes, esse é um material difícil, mas ela conduz com mão gentil e firme até mesmo um leitor leigo através dos matagais teóricos (incluindo a infinidade dos números primos e o teorema da incompletude de Gödel).
É particularmente impressionante a discussão de Kilby sobre como podemos pensar o sofrimento e a perda, recuperando a compreensão da tradição cristã do mal como uma nulidade – como a ausência do bem em vez de uma realidade ontológica própria.
Há algum tempo, eu escrevi um artigo para o Commonweal sobre Jean Donovan, uma das missionárias estupradas e assassinadas por um esquadrão da morte salvadorenho em 1980 (ela tinha apenas 27 anos). Por acaso, eu fiz o Ensino Médio com Donovan, mas só descobri essa conexão décadas depois da sua morte. Sua coragem era notável e humilde, e seu assassinato brutal e sem sentido deixou em aberto todas as perguntas familiares sobre como e por que um Deus amoroso e todo-poderoso poderia criar um mundo em que o mal e o sofrimento florescem.
Muitas teodiceias cristãs, escreve Kilby, tentaram dar sentido a esse sofrimento, da mesma forma que enfatizaram a importância do sofrimento de Cristo na cruz. “Parece difícil resistir à conclusão de que um cristão deve reverenciar algo na própria perda e na própria morte – de que, de certa forma, elas são coisas boas”, escreve ela.
Refletindo sobre os escritos de Juliana de Norwich, Kilby sugere que um modo melhor de pensar sobre a miséria e a morte é rejeitar a ideia de que existe algum “valor último e misterioso vagamente percebido no sofrimento e na perda”.
Kilby não está dizendo que podemos ser indiferentes à dor dos outros. Ao invés disso, ela está tentando dar sentido à fé de Juliana de que o nosso sofrimento é “limitado pelo tempo” e que, no tempo bom de Deus, “tudo ficará bem e todos os tipos de coisas ficarão bem”.
Como cristãos, o nosso entendimento e conhecimento são reduzidos. “O nosso desejo de uma explicação, de uma história que dê sentido tanto ao amor quanto ao sofrimento, simplesmente não é atendido”, escreve Kilby. "Uma vida de fé é uma vida vivida com uma tensão que, antes do último dia, não pode, nem para Juliana nem para seus leitores, ser resolvida.”
Um dos aspectos mais inexplicáveis da decisão de Donovan de retornar a El Salvador foi o fato de que, para muitos de seus amigos, ela parecia estar cortejando a morte de forma descuidada. A decisão dela parecia irracional, imatura ou incompreensível para aqueles que imploravam para que ela não voltasse a um lugar onde os cristãos ativistas estavam sendo mortos.
Kilby oferece uma forma diferente de compreender o que à primeira vista parece ser um abraço imprudente no sofrimento. Tais martírios não poderiam testemunhar a verdade da tradição da privatio boni na teologia cristã, que não dá nenhum sentido ao mal e ao pecado?
“No nível do curso de ação escolhido, a vivência do compromisso, temos uma indiferença última, no sentido de que a ação realizada é realizada exatamente como se não houvesse nenhuma ameaça de sofrimento ou de perda”, escreve Kilby.
Pensar sobre as ações de Jean Donovan dessa forma não é fácil, se insistirmos em reconciliar as definições proposicionais da onipotência de Deus com a existência do mal, mas ajuda a dar um sentido àquilo que é tão poderosamente comovente no sacrifício de Cristo na cruz e no testemunho de cristãos como Donovan.
Em sua discussão sobre a Trindade, Kilby adverte contra os esforços de alguns teólogos para encontrar na formulação das “três pessoas em um” da Trindade um modelo social ou político para o modo como os cristãos deveriam agir em relação aos outros. Esse tipo de “projeção” corre o risco de domesticar o mistério e a incognoscibilidade última de Deus.
“É um erro”, sugere Kilby, “olhar para a teologia trinitária para ter uma recompensa prática demais, do ponto de vista sociopolítico ou outro: é errado insistir que a doutrina da Trindade deve ser justificada em algum tipo de forma funcional.”
É claro que a Trindade nos diz algo importante sobre como falar com Deus e sobre ele. Mas a doutrina deve ser entendida como “gramatical”, escreve Kilby, “uma regra, ou talvez um conjunto de regras, para ler as histórias bíblicas, para falar sobre alguns dos personagens que encontramos nessas histórias, para falar sobre a experiência da oração, para desenvolver o ‘vocabulário’ do cristianismo de uma forma apropriada”.
O artigo conclusivo do livro, “Beleza e mistério na matemática e na teologia”, é uma revelação para quem pensa que a matemática trata apenas de cálculos exatos, medição, manipulação e controle. Kilby explica que o campo da matemática “pura” não descreve o mundo natural, nem é de uso prático para o engenheiro ou cientista. É sobre a “beleza”.
Nesse sentido – e na sua exploração do incompreensível conceito de infinito –, ela é análoga ao trabalho realizado pelos teólogos, que também deveria ser valorizado pela sua beleza. Assim como o Deus que revela a si mesmo, embora permaneça oculto, a matemática pura não pode fornecer nenhuma resposta final.
“Uma das características mais marcantes de algumas das melhores matemáticas puras – algo que a torna bela – é a forma como ela nos confronta com aquilo que excede o nosso controle, a forma como ela nos abre para coisas que estão além da nossa capacidade de compreensão”, escreve Kilby.
A matemática pura permite que os praticantes descrevam com clareza e beleza cada vez maiores aquilo que é finalmente incalculável e incognoscível sobre a natureza dos números e, portanto, da realidade.
Vou acreditar na palavra dela. A busca por uma maior clareza, guiada pela humildade e por um senso de admiração, também é o modo como Kilby entende a teologia. É uma visão convincente, que não se rende nem a uma reticência apofática nem a uma ortodoxia complacente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A beleza do incompreensível e os limites da teologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU